No sábado 19/11/16 um helicóptero da PMERJ caiu na Cidade de Deus, levando a óbito 4 policiais militares. Ainda não se sabe a causa da queda da aeronave. Contudo, as suspeitas são de que criminosos alvejavam os policiais, resultando neste trágico acidente. A cidade que já está em clima de guerra agravada pelo pacote de austeridade proposto pelo Governador Pezão ficou ainda pior. No próprio sábado várias pessoas desapareceram na Cidade de Deus e pelo menos 7 corpos de jovens moradores foram encontrados numa mata, com indícios de execução. Não se sabe se as mortes ocorreram antes ou depois do acidente com os PMs.
Nesse contexto, viralizou mais uma polêmica. Na sexta-feira 18/11/2016, durante o programa televisivo Encontro com Fátima Bernardes, foi lançada pela apresentadora uma enquete bastante sensível. Com base no filme nacional de Andrucha Waddington, lançado no último dia 17, com o título: "Sob Pressão", foi questionado aos participantes, após ver uma cena em que um policial e um traficante estão feridos em um enfrentamento, quem os participantes salvariam primeiro. Ocorre que o traficante estava gravemente ferido e o policial, apesar de ter sido ferido pelo criminoso, apresentava ferimentos mais leves. Para surpresa dos expectadores, a maioria dos participantes do programa votaram a favor de socorrer primeiro o traficante, criando a comoção e revolta geral da população. Até mesmo no meio político a polêmica gerou reações. O Deputado Federal Jair Bolsonaro não demorou em acusar a apresentadora de defender bandidos.
Nesse momento, as redes sociais explodem na crucificação da apresentadora e na defesa exacerbada dos PMs, estes heroicos servidores públicos. Todo meu respeito aos policiais.
Bem, alguns dados nos mostram com mais clareza a realidade da relação policial x cidadãos (sejam eles criminosos ou não - visto que um cidadão só é criminoso após comprovação legal e condenação) no Rio de Janeiro. Segundo a CPI das mortes policiais no Estado do Rio de Janeiro, em andamento na ALERJ, só no ano de 2016, já foram mortos 114 policiais militares (os dados foram enviado pela PMERJ e são atualizados até 10/2016). Se considerarmos os agentes de segurança publica em sua totalidade este numero irá crescer, mas cerca de 80% são policiais militares. O número de policiais mortos em folga é maior do que os mortos em serviço. Um levantamento feito pela BBC Brasil, em 2013, informa que aproximadamente 1 policial é assassinado para cada 4 cidadão mortos pela polícia. Só este levantamento já nos mostra que há mais cidadãos mortos pela polícia do que policiais mortos por cidadãos. Segundo as estatísticas do ISP do Rio de Janeiro, em 2015 houve 16.550.024 mortes por intervenção policial no estado do Rio, o que gera uma taxa de 3,9 por 100 mil habitantes. No Mapa da Violência de Jacobo Waiselfisz, o perfil majoritário das vítimas de homicídios por arma de fogo no Brasil é de jovens negros com baixa escolaridade. Esse perfil se confirma no Índice de Homicídios na Adolescência produzido pelo Laboratório de Análise da Violência da UERJ.
Segundo a Human Rights Watch, a polícia do Rio de Janeiro mata 3 vezes mais que a americana, e morre 4 vezes mais. A Anistia Internacional diz que o Brasil e os Estados Unidos tem as polícias que mais matam no mundo. O Fórum de Segurança Pública acrescenta, o Brasil tem também a polícia que mais morre. Só em 2015 foram 98 policiais mortos, repare que no Reino Unido morrem em média 8 policiais por ano.
Os policiais matam muito mais que morrem. Contudo, são policiais. E para o "bom" brasileiro, bandido bom é bandido morto. Escolher atender primeiro um traficante, ainda que seu estado de saúde seja grave, ainda que a espera possa levá-lo a morte, é um sacrilégio para a nação. Com certeza não passará despercebido ou impune. Mas o que isso diz sobre nós? Porque os Direitos Humanos são constantemente confundidos com direitos dos criminosos? Por que temos uma polícia que mata e morre tanto?
Algumas reflexões que não podem ser completamente respondidas em um simples post de blog, mas que precisam ser feitas, precisam ser elaboradas, problematizadas e amplamente trabalhadas.
A sociedade brasileira é uma sociedade violenta, ainda que seja tão valorizada por sua cordialidade e simpatia. As mortes violentas vão muito além da relação policia - bandido. O Brasil é o 5º no ranking de países com maior proporção de casos de violência doméstica. Só este ano foram 67.962 mil casos de mulheres atendidas na Central de Atendimento a Mulher (Ligue 180) com relatos de algum tipo de violência. Além disso, temos uma sociedade extremamente desigual. No ranking com 188 países feito pela PNUD, o Brasil tem o 75º IDH (0,755), este valor cai quando se ajusta o IDH a desigualdade, chegando a um indice de 0,557. Isto aliado a falta de confiança nos governos e no sistema judiciário, tem polarizado cada vez mais os discursos e intensificado a ideia de que é preciso fazer a chamada "justiça popular".
Mas o que a bíblia nos diz sobre isso?
"Caros irmãos, não faleis mal uns dos outros. Quem se põe a falar contra algum irmão ou passa a julgar o seu irmão, acaba protestando contra a Lei e a julga também. Ora, se passas a julgar a Lei, cessas de obedecê-la e assumis a posição de juiz. 12Um só é o Legislador e Juiz, Aquele que pode salvar e aniquilar. Tu, no entanto, quem és, para julgar o teu semelhante?" (Tiago 4:11-12
Mesmo com todas as falhas da nossa querida democracia e sistema judiciário, ainda assim, temos leis e regras que nos livram da barbárie completa. Prezar pela manutenção dessas proteções é presar pela vida e por um mínimo de segurança para todos. Quando decidimos nos tornar juízes populares, pronto a sentenciar todo e qualquer comportamento que desaprovemos, estamos destruindo séculos de conquistas feitas a preço de sangue. Quem pode julgar o valor de uma vida? Quem está apto a decidir quem tem ou não o direito de viver? Cada um tem sua história, sua trajetória, suas mazelas. Traficante também tem mãe, pai, irmãos, avós, tios, filhos. São seres humanos que em sua maioria não tiveram as mesmas oportunidades e o mesmo arcabouço familiar que você e eu. São pessoas que não souberam ou não tiveram como lidar com as circunstâncias difíceis, com o preconceito, com a exclusão social. Inúmeras são as circunstâncias que podem levar uma pessoa a uma a ter uma conduta desviante. Mas uma coisa é certa, por mais desviante que seja um comportamento, estamos falando de seres humanos. Os alemães que entregaram o país ao nazismo eram pessoas comuns, cidadãos de "bem", que foram capazes de permitir e praticar as maiores atrocidades contra a humanidade. Ninguém, sem exceção, está livre de cometer erros e equívocos. Garantir o direito a vida, a um julgamento justo, é garantir que estamos seguindo no melhor caminho para todos.
Caso você ainda não tenha tido a oportunidade de conhecer um juramento médico, temos um exemplo:
Juramento médico de 1983 em Portugal:Prometo solenemente consagrar a minha vida ao serviço da Humanidade.
Darei aos meus Mestres o respeito e o reconhecimento que lhes são devidos.Exercerei a minha arte com consciência e dignidade.A Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação.Mesmo após a morte do doente respeitarei os segredos que me tiver confiado.Manterei por todos os meios ao meu alcance, a honra e as nobres tradições da profissão médica.Os meus Colegas serão meus irmãos.Não permitirei que considerações de religião, nacionalidade, raça, partido político, ou posição social se interponham entre o meu dever e o meu Doente.Guardarei respeito absoluto pela Vida Humana desde o seu início, mesmo sob ameaça e não farei uso dos meus conhecimentos Médicos contra as leis da Humanidade.Faço estas promessas solenemente, livremente e sob a minha honra.
No Brasil este juramento tem várias versões, que dependem da instituição de ensino em que o médico está se formando. Porém o juramento de 1983 também é amplamente utilizado e mais completo do que os demais.
Um médico precisa sempre priorizar a vida. Não importa se é criminoso ou não, importa que é uma vida. Mesmo nos hospitais, existe um processo de triagem. Ninguém pergunta sua religião, opção política ou pedem sua ficha criminal. Todo o processo é baseado na gravidade do estado de saúde e no grau de urgência. Isso garante que todos terão o melhor tratamento de acordo com suas necessidades.
Infelizmente a era da modernidade tecnológica e da internet tem produzido uma geração de impacientes, que leem apenas fragmentos e reproduzem em massa uma gama de conteúdo sem reflexão ou averiguação. Fizeram um recorte da enquete produzia no programa Encontro com Fátima Bernardes, lançaram na rede e em menos de 24 horas começou a reprodução acrecida em cada novo post, da disseminação de mais ódio e revolta. A coisa se retroalimenta e nessas horas a cara da nossa sociedade fica nua e crua, completamente exposta. Decidir sobre a vida de alguém se torna algo banal e da competência de todos. Não se perguntam sobre quem seria esse policial, quem seria esse traficante. Não interessa saber quem são ou suas histórias. Poderia ser um policial corrupto, que bate na mulher e entra na favela matando inocentes. Poderia ser um traficante que sofreu abuso sexual, foi abandonado pela família, que era espancado por um pai alcoólatra, ou filho de uma mãe viciada em crack. Enfim, quem sabe quem são eles? Mas as pessoas se sentem no dever e no direito de sentenciar quem deve morrer. Que fique claro, não estou fazendo apologia ao crime ou desmerecendo os policiais. Mas essa discussão sobre quem merece viver não pode continuar sendo tão rasa. Muito mais do que querer dar sentenças, precisamos nos debruçar sobre a origem do problema. Por que tanta desigualdade, jovens entrando para o trafico e mortes banalizadas? Precisamos pensar o tipo de sociedade que somos e a que queremos ser. Somos nós quem produzimos e reproduzimos a pobreza, a miséria, a criminalidade e a corrupção. São nossos atos do dia a dia, é a nossa indiferença e passividade que mantém o status quo.
Como cristãos, devemos ser justos e lutar pela justiça. Não uma justiça farisaica, que atende apenas aos nossos desejo e protege os mais ricos e fortes, deixando os mais necessitados a própria sorte, O clamor pela morte do traficante é o reflexo de uma sociedade sem empatia, que reproduz as injustiças sofridas naqueles que lhe parecem menos humanos, menos gente. Clamem por uma sociedade mais justa. Clamem pra que não hajam mortes.
Meus sentimentos as famílias dos policiais mortos e as famílias dos jovens mortos na Cidade de Deus.
Graça e Paz.
Chesed Veshalom.
fonte:
http://www.fazenda.gov.br/centrais-de-conteudos/publicacoes/relatorio-sobre-a-distribuicao-da-renda-e-da-riqueza-da-populacao-brasileira/relatorio-distribuicao-da-renda-2016-05-09.pdf
http://www.compromissoeatitude.org.br/dados-e-estatisticas-sobre-violencia-contra-as-mulheres/
http://www.forumseguranca.org.br/produtos/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/10o-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica
http://www.lav.uerj.br/relat2009.html
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf
http://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2016/11/jair-bolsonaro-acusa-fatima-bernardes-de-defender-bandidos-em-seu-programa-8419885.html
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-250199/
http://bibliaportugues.com/james/4-11.htm
http://www.isp.rj.gov.br/Conteudo.asp?ident=137
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/09/140914_salasocial_eleicoes2014_violencia_policia_numeros_lk_jp
http://www.deputadopauloramos.com.br/?p=10602